domingo, 5 de setembro de 2010

Minha profecia

Sobrevoamos toda a cidade de Barueri até chegarmos à Itapevi.
Gabriel me disse que ninguém poderia me ver a não ser que eu quisesse. Eu estava pensando nisso, aliás. Andressa não me veria mais, a não ser que eu quisesse. Mas como ela iria me ver? Quando eu ainda era vivo eu via Gabriel de uma maneira diferente. Ele continua loiro mas seu corpo, agora que não estou mais vivo, parece desenhado especialmente para ter as asas nas costas. Como se suas costas fossem preparadas para carregar os imensos lençóis de penas.
Eu imaginava que minhas costas fossem assim também. Mas, assim como eu não via as asas de Gabriel, Andressa também não veria as minhas.
Eu estava encabulado. Nervoso. Pensava no que essa minha nova situação acarretaria. Mortos — e eu era um deles — não deveriam falar com os vivos.
Comecei a ouvir gritos. Um homem gritava injúrias.
— Quem é? — perguntei a Gabriel.
Ele limitou-se a me olhar subliminarmente me dizendo "você descobrirá daqui a pouco".
Pousamos em uma lugar onde eu nunca fora antes. Um terreno baldio, parecia ter sido um ferro-velho antigamente. Havia uma pilha de capôs de carro, portas de carro, e mais umas peças de automóveis diferentes de um lado e era de lá que vinham os gritos.
— Quem é? — perguntei a Gabriel.
O homem gemia de lá de baixo daquela pilha de coisas "me tira daqui!".
— Você verá.
Gabriel andou até a pilha de objetos de metal e fechou os olhos. Logo, as carcaças começaram a levitar dando imagem a um homem meio àquele ferro velho. Mas eu conhecia ele. Era Tom. Aquele que tentou me matar na viatura de polícia. Ele estava, além de preso entre as peças de ferro, preso com arame pelos pulsos e pernas. Como ele sobrevivera ali?
— Tom? — eu disse mais em tom casual do que como uma pergunta.
— Tom Cruz-Negra para você, Renael — disse o prisioneiro antes de cuspir em mim.
Desviei minha perna do cuspe que alcançou meu tornozelo e começou a fazer fumaça.
— Que foi isso? — reclamei. A fumaça parou e eu olhei para Gabriel.
— Daniel... — disse o anjo ao meu lado.
— Não me chame desse nome! — Tom tentou se livrar dos objetos que o prendiam.
— Daniel? — perguntei à Gabriel.
Gabriel chegou mais perto de Tom.
— Posso ajudar sua alma a ser salva... — Gabriel disse a Tom.
— Não quero que minha alma seja salva! Quero que me tire daqui!
Eu não estava entendendo o que eles falavam.
— Eu lhe tiro daí com uma condição.
Tom olhou para Gabriel meio indeciso, mas assentiu com a cabeça. Acho que ele já sabia o que era.
Gabriel não me traria aqui por qualquer razão. Mas por quê Tom iria me dizer a profecia?
Gabriel soltou Tom dos arames. Tom se pôs de pé meio cambaleante.
— Posso ter perdido as asas... Mas não perdi a honra. Quer que eu diga agora?
Gabriel sentou-se numa poltrona de carro e fez sinal para que Tom fosse adiante.
Tom respirou fundo e apontou o dedo à minha face.
— Escute aqui garoto, não é porque estou sendo bonzinho agora, que não me vingarei de você no futuro. — Ele limpou a garganta e começou a falar: — Você, eu, Gabriel, e todos os anjos nascemos pré-destinados  a isso. Desde crianças já apresentamos sinais de que seremos seres imortais. Mas nem todos chegam a virar esses seres alados que tantos confiam. Sabe por quê?
— Balancei minha cabeça, negando.
— Haha, é claro que não sabe. — continuou Tom — Porque para virar um Anjo, essa criança deve encontrar sua fonte. A fonte é um objeto, um animal, um elemento ou até uma pessoa que vai te dar forças para viver e ser invencível. Para virar um Anjo, você deve viver, lutar, e morrer por essa coisa.
Olhei para Gabriel e ele assentiu. Agora eu entendia o por quê de ele ter dito para eu proteger Andressa com minha vida. Estava pré-destinado.
Tom continuou:
— Após achar a fonte e completar o ciclo mortal, a pessoa se torna um Anjo. Anjos, normalmente, ficam no exército divino, comandados pelo Anjo-Rei. O Anjo-Rei é o Anjo-braço-direito do Pai. Será ele que comandará as tropas divinas. E, ao que tudo indica, o exército está sem seu Anjo-Rei, agora que Thomazrael se juntou ao lado negro.
— Então... Thomáz era Anjo-Rei?
— Sim. Ele era o Anjo-Rei. — Tom virou-se e deu dois passos. Parou assim que Gabriel ameaçou descer da poltrona. Virou-se de novo e continuou a falar: — Ele foi fraco. Ele não resistiu aos pecados carnais. Sabe, quando arrancaram as asas dele eu ainda estava lá. As marcas que fizeram nele... acho que você viu não é? Pois é... Tudo aquilo... Tudo aquilo ele fez.
Franzi a testa surpreso. Não acreditava que Thomáz cometera todas aquelas atrocidades desenhadas em sua pele.
— Ele foi um burro. E ele te odeia sabia? Hahá... O grande Renael! O novo Anjo-Rei. Aquele que salvará o mundo da confronto entre o céu e o inferno...
— O que? — eu perguntei.
— Isso mesmo. Você, meu querido. Salvará o mundo. Isso é: a não ser que haja outro Renael nesse mundo. Você, desde criança, vem sido perseguido pelos seres obscuros. Sua mãe sabia o que era preciso para te proteger. Na verdade, ela sabia de tudo. Sempre soube seu destino. Seu pai, coitado, não sabia de nada. Ele não era uma má pessoa. Ele apenas ficou muito confuso. Sua mãe nunca contou a seu pai o que você seria e qual era seu futuro. Ela fez isso pelo seu bem. Seu pai era meio desequilibrado, não entenderia. Então sua mãe te enviou para sua tia. Seu pai, quando chegou em casa e viu que você não estava lá ficou bravo. Sua mãe então fugiu. Tudo que sabemos dela é que foi para a capital, São Paulo.
Então minha mãe estava viva. Ah, o que ela diria se descobrisse que eu morri?
— Acho que já fiz minha parte. Posso ir embora agora, Gabriel?
Gabriel deu passagem para Tom e ele saiu correndo. Quase caiu quando chegou próximo a um muro, tropeçou e caiu. Fiquei olhando ele e acompanhei seu processo de regeneração ao voltar ao normal e pular o muro. Acho que ele caiu do outro lado do muro, se espatifando também, pois ouvi um gemido.
Virei para fitar Gabriel, queria que ele me explicasse melhor, mas acho que ele não faria isso.
— Por que ele teve que me explicar?
Ele virou de costas e começou a andar em direção a uma casinha próxima.
— Anjos não tem permissão para falar sobre as profecias — ele disse.
Fui atrás dele e ele entrou na casa.
Era uma casa onde guardavam ferramentas. Havia ferramentas de todo o tipo e algumas máquinas ali.
— O que mais não podemos? — perguntei a Gabriel.
Ele virou o rosto para mim depois virou de costas de novo.
— Cometer pecados...
Então ele virou todo o corpo e sentou-se num banquinho rente à uma mesa.
— Falar com os humanos — prosseguiu ele.
— O que? — eu não poderia falar com Andressa?
— Renael, elas não podem nos ver. Ficariam loucas se nos vissem.
— Mas isso é... isso é... injusto!
— Injusto é deixar as pessoas questionando sua própria sanidade.
Ele estava certo. Mas... e Andressa? Eu não aguentaria ficar uma eternidade sem vê-la.
Fiquei de cabeça baixa por um instante. Gabriel estava com vontade de dizer algo, mas se conteve. Colocou as mão embaixo da asa direita e de lá tirou algo estranho. Parecia um instrumento de cozinhar.
— Tome.
Ele me entregou o negócio e então eu vi que era maior do que parecia. Tinha um cabo grosso e pesado, sustentando uma esfera repleta de espinhos. Era dourado e tinha um brilho próprio. Ele me entregou e eu segurei com receio. Era um pouco pesado mas parecia que se habituava à minha mão.
— O que é isso?
— Você vai usar isso agora. Será sua arma. É de aço misturado a ouro. Abençoado por Deus e pelo Papa. Ou seja, mortal à humanos, demônios... e Anjos.
Olhei melhor para a arma. Nela estava gravada a frase "E aqueles que nele vivem estarão salvos", igual à espada presente em meu sonho.
— Mas... Anjos não podem morrer... Já estamos mortos, não é?
Ele não respondeu.
Andou ao redor da sala depois parou, me olhou, e veio para mim de braços abertos.
— Ah, meu irmão! Tanta cois apara te explicar que nem pude te dar as boas-vindas. — há dois minutos atrás eu não esperaria isso.
Eu não estava feliz, mesmo assim não deixei de sorrir.
— Então quer dizer que sou "o Anjo-Rei"?
Gabriel riu.
— Calma, calma, irmão. Ainda não. Você tem toda uma missão pela frente. Por enquanto, você será um guardião.
— Guardião?
— Sim. Os famosos Anjos da Guarda. Você guardará uma vida e receberá meu treinamento para entrar no Exército Divino.
Anjo da Guarda? Eu guardaria uma vida? Será que eu poderia ser o Anjo da Guarda de Andressa? Como se lendo meu pensamento, Gabriel respondeu:
— Infelizmente seu protegido já foi escolhido, Renael.
Não seria Andressa então.
— E quem é?
Ele colocou a mão em meu ombro e eu pude ver o rosto da pessoa quem eu protegeria de agora em diante. Aquele rosto... eu nunca esqueceria. Principalmente pois este ficara marcado em minha vida. E eu o protegeria. Seria um acaso do destino?
— Sabe quem é? — Gabriel perguntou.
Abri os olhos que eu nem percebera que fechara.
— Sei.
— Ótimo. Proteja esta pessoa. Mostre que é capaz de entrar no Exército Divino.
Assenti.
— O que aconteceu com o antigo Anjo da Guarda? — perguntei.
— Ele... se juntou ao lado negro. Cada vez mais Anjos estão fazendo isso, Renael. Devemos impedir isto. Mas por enquanto... Complete sua missão. Você é fundamental nisso tudo. Precisamos de você, Renael.
Pensei nas palavras de Gabriel e pensei também no meu futuro. Depois desse dia eu não seria mais Renan. Eu seria Renael, o Anjo. Mas antes eu precisava fazer algo. Algo que eu não me contentava em deixar inacabado. Uma missão pessoal. Algo que só eu entendia.
— Gabriel — ele passou a prestar atenção em mim. — Preciso fazer algo antes de começar a missão. Posso?

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