segunda-feira, 26 de julho de 2010

 O som veio do fundo do estômago de Tabata até sua garganta. Quando saiu, fez um enorme barulho grave. Tabata arrotou.
    – Caramba  – disse Tabata, saindo do transe – , eu acho que o bacon de ontem voltou para dar um olá. – Ela começou a rir enquanto a olhávamos assustados.
 – Tabata... – eu ia perguntar quem era, que nome ela ia dizer, mas ela não se lembraria.
  Eu sai perturbado de lá. Elas continuaram conversando sobre o que acontecera.
Droga! Será que eu nunca conseguiria alguma resposta que preste? Não. Hoje eu estou decidido a ter respostas.
Elas riam do acontecimento, mas eu não conseguia achar graça.
 – Tabata – chamei.
Ela olhou e eu a puxei de canto.
 – Preciso que faça outro contato.
  – Agora não dá, Renan.
 – Por que?
  – Bom. Não deve ter funcionado agora por causa da claridade. Esses tipos de espíritos não gostam muito de luz. Se você puder esperar até à noite, eu posso faltar na escola e...
Deixei-a ali. Mas que diabos! Nada funcionava direito para mim. Eu precisava de respostas concretas.
Sai de lá e sentei-me na soleira da porta. Dona Ana abriu a porta e saiu dando gargalhadas. Ela me viu alí no chão e perguntou:
  – Tabata pode fazer de novo mais tarde, Renan.
Limitei-me a sorrir a ela.
Ela colocou uma sacola no cesto de lixo posto na calçada e voltou. Sentou-se do meu lado e ficou me olhando. Eu não gosto muito que façam isso, eu fico com vergonha.
A tia de Andressa era muito legal, me oferecera comida e nos oferecera um lugar para ficar. Mas eu tinha muitas questões na cabeça. Uma delas era:
 – Os pais de Andressa...
Dona Ana suspirou. Olhou pela janela e eu acompanhei seu olhar. Este pousou em Andressa. Ela sorria, conversava com Tabata na sala.
  – Andressa não conhece seu pai. Ele a abandonou quando ela tinha cinco anos. Desde então sua mãe se tornou uma alcoólatra. Elas não se falam. Na verdade Ela nem se dá conta de que Andressa esta viva. Andressa se cuida sozinha. Ela é mais matura do que parece ser, rapaz.
  As palavras de dona Ana me pegaram de surpresa. Nunca imaginei que Andressa pudesse ter uma história tão triste. Então era por isso que ninguém a havia procurado depois de uma semana fora de casa.
  – E você, meu rapaz – ela colocou a mão em meu ombro, – qual a sua história?
Eu,pela primeira vez, não tinha palavras. Não tinha nada para contar sobre minha vida. Na verdade, não me lembrava de mais nada da minha vida antes de Andressa. Parece como um borrão escuro.
Não me lembro da primeira vez que andei de bicicleta; Não me lembro de meu aniversário de cinco anos; Não me lembro de meu primeiro animal de estimação. Não me lembrava de nada. Na verdade, não me lembrava nem de meus pais. Meus pais. Um desespero me tomou. Eu não conheço meus pais.
 – Eu... sou só... um cara... normal.
Ela me olhava com um sorriso escondido entre lábios rugosos.
 – Meus pais... me mandaram para a pensão de minha tia Bete. Eu não os vejo há cinco anos...
De repente eu tive uma vontade imensa de ver o rosto de meus pais.
  – Bom – disse dona Ana, – eu vou entrar. Não fique aqui fora. Está frio hoje.
E entrou. Estava mesmo frio.
Eu me levantei e ia entrar quando um vento, com um som arrastador tocou minha orelha a gelando. Ele me trouxe pensamentos. Lembrei-me da noite em que Rubens apareceu. Da enorme força que eu adquirira e de como Andressa ficara inconsciente quando a beijei. Lembrei-me de Gabriel. Ele e Bruno me disseram coisas muito esquisitas. Apontaram para suas costas e perguntaram se eu via algo. Por mais hipóteses que meu cérebro criava eu não conseguia acreditar em nenhuma delas.
O vento fazia um chiado estranho. Parecia uma voz.
De repente a vontade de ver o rosto de meus pais aumentou.
Uma dúvida pairou sobre minha cabeça.
Afinal, quem sou eu?
Renael.
Quem é Renael?
Eu só percebi que eu andava quando um carro buzinou e passou raspando à minha frente.
Pude ver meu reflexo no vidro escuro do carro. Aquele não era mais eu. Eu estava diferente de quando conheci Andressa. O corpo magro não era mais tão magro e eu tinha músculos.
Andressa tinha uma influencia incrível sobre meu corpo. Como se todas as minhas células reagissem ao seu contato.
Eu continuei a andar e então descobri meu rumo. Eu estava indo para minha antiga casa, a pensão.
Avistei-a assim que cheguei à rua. Agora devia ser dez horas da manhã.
A casa estava destruída. As paredes estavam todas rachadas e não havia mais teto, apenas um pedaço de laje na parte da cozinha.
Passei por debaixo das faixas de "fique longe" e entrei em casa.
Aquela era minha casa. Eu cresci ali. A ultima memória que eu tinha de uma vida normal era ali.
A cozinha, os moveis no chão, a sala, o sofá deitado. Eu tinha que subir aquela escada.
Os degraus pareciam maiores. Meu quarto ainda estava lá. Intacto




Exatamente como o deixei. Embaixo da cama eu lembro de ter guardado um baú.
Puxei-o de lá e o abri.
Lá dentro havia fotos, cartas, folhas, desenhos.
Tirei algumas fotos de lá. Pessoas morenas, como eu, sorrindo.
Uma mulher bonita, agora eu me lembrava de minha mãe. Mas... eu não me lembrava mais do motivo pelo qual ela me mandara para a pensão. Por um momento perturbador comecei a suspeitar se aquilo havia acontecido mesmo, se aqueles eram mesmo meus pais.
Fucei mais e mais nas fotos e não achei nenhuma na qual aparecesse uma imagem minha quando bebê.
Não achei.
Olhei as cartas.
Cartas de meu pai para minha mãe.
Li uma delas.


Querida Tania, você não respondeu minhas cartas anteriores.
Estou preocupado. Renan está bem? Esta noite sonhei com ele de novo.
Tenho tido muitos sonhos com ele ultimamente. A cada um fico mais preocupado.
Desta vez sonhei que ele estava no berço e de repente aparecia uma figura negra.
Ela colocava a mão na cabeça dele e passava a mão em seus cabelos.
O mais estranho era que emanava uma luz estranha de Renan.
O sonho estava tranquilo até ai, mas a figura negra levanta a mão e posso ver os ossos formando dedos.
Acordei muito assustado.
Estou com muita saudade de vocês, por favor me mande notícias.
Te amo minha Flor mais bela.


Fixei-me mais nessa ultima frase: "Te amo minha Flor mais bela".
Aqueles rabiscos pareciam intencionais e não pareciam ser partes da carta.
O que levara a alguém rabiscar aquelas letras? TE NHA F E.
Pensei um pouco e depois escrevi as letras na poeira. TE NHA F E. Tentei colocar lógica naquilo.
Tenha Fé. Minha mãe deve ter deixado isso como uma mensagem. E se ela soubesse que eu leria a carta?
De repente essa de brincar com letras me remeteu à uma coisa. Odiaco. Quebrei minha cabeça pensando naquilo. Escrevi a palavra na poeira da tampa da caixa.
Procurei formações prováveis. Odiaco. De trás para frente, ocaido. O caido. O Caído.
Gabriel, Renael... Levantei-me com a carta na mão, ainda.
 Tenha fé. Minha mãe queria me dizer isto.
Eu olhava desesperadamente a procura de algo para fazer. Algo para me proteger. Algo para parar de fazer minha cabeça parar de girar.
Com a queda de metade da parede, uma escada se formara. Ia em direção à laje. Eu a subi
O céu estava de um cinza pesado, ao mesmo tempo claro.
Avistei a rua ao meu redor. Olhei dentro de casa, ainda havia rochas e pedaços de tijolos lá no chão.
Andei um pouco sobre a laje e calculei a distancia de onde eu estava até o chão da sala. Uma altura relativamente grande. Três metros, talvez, três metros e meio.
Tomei distancia do buraco na laje. Tenha fé. Mergulhei rumo chão da sala.

Nenhum comentário:

Postar um comentário