domingo, 1 de agosto de 2010

Anjos

  – Vamos.
 – Para onde estamos indo, mamãe?
Ela me arrastava pela rua. Me segurava com uma mão. Na outra mão, segurava uma bolsa.
Ela tinha pressa. Olhava para trás constantemente. Como se estivéssemos sendo seguidos.
Havia toda uma multidão na rua indo para todos os lados. Mamãe me levava para frente, eu podia ver um ônibus ali.
 Tia Bete estava lá também.
  – Escute – Mamãe se abaixou, segurando minhas mãos e olhando em meus olhos, e disse: – Você vai passar um tempo fora.
 Ela olhou por sobre meu ombro e se apressou em dizer.
  –  Tia Bete cuidará de você, o.k.? –  assenti para ela. Havia lágrimas em seus olhos. – Eu te amo, meu garotinho.
Mamãe me abraçou. Se levantou para falar com tia Bete.
  – Você tem certeza que é o melhor para se fazer? – perguntara tia Bete e mamãe assentira.
Olhei para trás e pude ver uma figura muito estranha, algo realmente assustador, se movimentando pela multidão. De repente fiquei com frio.
  – Está na hora. – Mamãe me pegou no colo, beijou minha testa e me abraçou. – Eu vou sentir tanto sua falta – murmurou.
 Depois me entregou ao colo de Tia Bete que me disse "Vai ficar tudo bem".
 Tudo então aconteceu muito rápido. Entramos, tia Bete e eu, no ônibus, enquanto mamãe acenava para nó do lado de fora.
 A figura estranha alcançara minha mãe que se virara.
 Tia Bete me virara para ela. "Vai ficar tudo bem", murmurara de novo.


***


  Toquei o chão com a ponta do dedo indicador. Havia vários pedaços de telhas por lá.
Com certeza, se eu tivesse caído sobre alguma delas eu teria sido profundamente perfurado.
 Mas alguém me segurara pelo calcanhar. Eu sentia a pressão e como eu não havia sido solto ainda, podia julgar que era alguém muito forte que me agarrara.
  – Por que sua mãe não escreveu "tenha juízo" em vez de "tenha fé"?
E eu fui me comprimindo lentamente contra o chão que não me machucara.
Quando me vi completamente deitado no chão, olhei para cima.
Gabriel, o estranho, me olhava de onde estava – a laje onde eu estava há uns segundos atrás.
Ele pulou caindo do meu lado. Eu ainda estava deitado.
  – O que deu em sua cabeça para pular de lá?
Eu me sentei coçando minha cabeça. Ele era... eu tenho certeza de que ele era...
 – Você é... – eu disse. – Você é... Eu sei que é...
Ele me olhava esperando eu terminar a frase.
Levantei-me e dei dois passos para trás.
 – Um anjo. Você é um anjo.
  – Obrigado.
Ele sorria agora.
  – Escute, Renael, eu não tenho muito tempo...
 – Você nunca tem, não é? – Eu o interrompi.
Ele deu uma risadinha.
  – Ouça. Há algo que você precisa saber, que eu não posso falar.
Que ótimo, ele sempre me ajudava com suas palavras.
 – Então, não será você quem me dirá o que devo saber.
  – Não.
Ele estendeu-me um livro. Era o livro de sacrifícios. Mas não sei de onde ele tirou o livro.
– Pra quê isso?
  – Vai ser muito útil, hoje.
 – Vai?
Ele contornou o cômodo em que estávamos.
  – Sua mãe sabia.
 – Sabia? – do que ele estava falando? Eu nunca entendia o que ele dizia.
  – Eu sei que você não entende metade do que eu falo. – Bingo. Parecia que ele havia lido meus pensamentos. – Mas eu não posso explicar... não tudo.
 – Eu não preciso saber de tudo, Gabriel. Eu só preciso saber... Por que? Que... que merda é essa de Renael?
Ele contornou de novo o cômodo em que estávamos e dessa vez parou à minha frente, olhando para mim.
  – Sua mãe sabia.
Ele já estava me dando raiva. Lancei o livro que ele me dera há pouco e virei as costas para ele. Eu ia saindo para a porta quando ele apareceu lá. Com o livro na mão.
  – Ele será muito útil hoje.
 – Cassete! Dá para você me dizer algo?
  – Sua mãe...
 – Minha mãe sabia, blá, blá, blá! Algo concreto.
  – Eles vieram te pegar – fiz silêncio, era a primeira coisa que ele dizia que não começava com "sua mãe" ou "esse livro". – Sua mãe te protegeu. Ela sempre te protegeu. Seu pai estava viajando. Estava longe. Ele podia sentir que havia algo errado. Mas ele não podia saber. Ela só teve uma escolha: te enviar à sua tia. Seu pai não sabia o que havia acontecido... Ele... não sabia. Sua mãe sabia.
O olhei, chocado. Ninguém nunca havia falado sobre meus pais. Eu queria saber mais mas... Ele não me diria, tenho certeza.
  – Renael, – ele agarrou meus ombros e olhou em meus olhos. Seus olhos eram negros. – você faz parte de uma profecia. A maior de todas. O que acontecer esta noite será apenas o começo. Agora vá.
E ele saiu da minha frente.
Eu fiquei parado por um instante. Depois andei. Parei ao ouvir a voz de Gabriel.
  – Renael – olhei para trás mas ele não estava mais lá. – Com sua vida.
E a voz se fora.
Com minha vida?
Pensei por um momento.
Ele dissera uma vez: "Proteja Andressa com sua vida"
Andressa. Andressa!
Agora eu corria. Corria pelas ruas. A casa de Tabata ficava há uns bons quarteirões dali.
Agora que eu pensava melhor via a besteira que eu fizera. Proteja Andressa com sua vida. E eu a deixara na casa de Tabata.
Passara correndo por uma viatura de polícia e só então lembrei-me de que eu estava sendo procurado.
Não demorou mais de um minuto para eu ouvir as sirenes
 – Droga!
Continuei correndo. Olhei para o céu e pensei "para me deixar enigmas você serve não é, Gabriel? Me ajuda agora..."
Eu já não aguentava mais correr. Minhas pernas estavam cansadas. Eu só tinha força com Andressa. Sem ela me sentia fraco. E agora, parecia que algo estava errado, como se algo tivesse fora do lugar.
Parei para respirar e o carro da polícia vinha se aproximando quando algo caiu no capô do veículo.
Eles pararam e saíram para ver o que era.
Um pombo. De onde eu estava, parecia estar morto. Mas isto não os segurariam ali tempo suficiente para eu fugir.
Foi só pensar nisso que aconteceu. Bizarramente, mais pombos caíram sobre o capô. Os policiais pararam e olharam para cima. Eu corri.
Em uma vantagem de distancia boa, olhei para trás e vi os pombos no capô alçarem voo.


Despistei os policiais mas ainda estava com a impressão de que eles haviam me seguido.
A casa de Tabata estava ali à minha frente.
Entrei pela porta e logo percebi que não estava nada certo.
O relógio mostrava as horas: 16:35.
Fui para a cozinha e vi Tabata deitada no chão. Ela estava com os olhos fechados. 
Abaixei e a sacudi.
 – Tabata. Tabata! – Eu gritava.
Ela voltou à consciência.
  – Renan...
 – Tabata... o que aconteceu? Onde está a Andressa?
   – Renan ... a Andressa... Eles levaram ela...
 O mundo parou para mim. Um frio se apoderou de meu corpo.
 – Eles quem?
  – Bruno...  Eles disseram que era para você ir buscá-la, se pudesse...
A soltei e ela bateu a cabeça no chão. Pude ouvir um "Ai".
Enquanto ela levantava eu coloquei o livro na mesa e o abri. Página 96.
  – Hei, mais cuidado com as pessoas... – A voz de Tabata chiava em minha cabeça.
Li a página que procurava:


O ritual consiste em oferecer uma alma a Tomáz, o anjo caído.


"O anjo caído", O caído, O diaco.
 Virei para Tabata e lhe perguntei.
 – Quando você faz algum contato – ela ficou atenta agora, – você pode falar com... anjos?
  – Como?
 – Caídos... Anjos caídos... eles são demônios, não?
Tabata pensou um pouco.
  – Eu acho que sim. Eu vi isso em um livro uma vez.
Então era isso? Tomáz fizera contato conosco aquele dia?
Olhei para o chão. Olhei para Tabata.
 – Eu vou atrás deles.
  – O que? Você não pode. Você não... Renan.
Mas eu já estava  na porta.
  – Renan – Tabata correu para mim e pegou minha mão.
 Olhei para ela e ela disse olhando em meus olhos:
  – Se lembra quando li sua mão, aquele dia na loja de velas?
Forcei a memória e acabei me lembrando. Tabata agarrara minha mão e ficara estudando-a atentamente com cara de assustada.
Mais uma vez ela agarrou minha mão e virou a palma para cima. Percorreu uma linha de veia com a unha do dedo indicador e começou a dizer.
  – Esta é a linha da sua vida. Há uma interrupção aqui, quando outra linha, outra vida a cruza. Andressa – ela apontou para onde havia um encontro de veias, bem no meio da minha mão. – Um pouco mais à frente – ela apontou para onde a veia desaparecia, – Ela some. Sua vida acaba aqui, Renan.

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