domingo, 8 de agosto de 2010

O dia em que eu morrer

 – O que você quer dizer?
Tabata virou-se e caminhou pela sala por um instante.
  – Quero dizer que... e eu posso estar errada...
 – Que eu vou morrer?
Fiquei a fitá-la, esperando ela virar e dizer. Ela se virou, tirou os óculos e, depois de limpar uma lágrima, balançou a cabeça afirmativamente.
 – Que se dane – lembrei das palavras de Gabriel, "proteja ela com sua vida". – Que eu morra por Andressa então.
  – Renan.
Me virei.
  – Não significa que você vá morrer hoje. – Ela olhou meu rosto e eu pude ver que seus olhos estavam molhados. – Não sei o dia que vai acontecer. Quando olhei sua mão, vi que seria próxima.
 Isso não me ajudava muito. Então quer dizer que eu estava em meus últimos dias?
 Balancei minha cabeça em afirmação.
 – Ta legal.
 Olhei ao redor e tentei pensar em algo que me ajudaria se eu fosse resgatar Andressa.
Fui até a cozinha e procurei na gaveta de talheres. Uma faca?
Guardei-a no bolso. já iria dar 18 horas.
 Dei dois passos depois pensei. Meio perigoso – para mim – colocar uma faca no bolso, não? Precisava de um casaco.
 – ô Tabata!
  – Oi?
 – Você tem uma blusa? Um casaco para me emprestar, um sobretudo se possível.
  – Acho que minha mãe tem um lá no guarda roupas dela.
 Passei pela sala e subi as escadas.
 – Eles disseram para onde foram?
 Tabata ficou calada.
 – Tabata?
Desci as escadas e olhei para a sala. Tabata não estava lá.
 – Tabata? – chamei-a de novo.
Subi as escadas de novo. Tabata devia ter ido ao banheiro ou sei lá.
O quarto da mãe de Tabata era o último do corredor, não era?
Fui até lá e descobri que não era.
Voltei uma porta e achei.
Um quarto bem grande. Na verdade eu não sabia se ela tinha marido. Desde que eu estava lá não vi nenhum homem entrar lá e não vi ela dormir com ninguém. Se bem que... Eu nunca havia dormido lá. Percebi isso de um momento à outro. Havia quanto tempo eu não dormia? Desmaiar não é ter uma boa noite de sono. Há quanto tempo eu não comia? De repente eu me sentia fraco e com fome. O sono me consumiu como fogo. Como se houvessem me jogado álcool e acendido um fósforo. Era dor.
Tentei esquecer minhas aflições. Tentei pensar em outra coisa. Andressa.
Eu tinha que ajudar Andressa. Com minha vida.. E eu sentia que ela estava em apuro.
Casaco. Abri as portas do guarda roupas ali naquele quarto. Vasculhei tudo mas não achei. Achei mil roupas femininas, mas nenhum casaco que eu pudesse usar. Abri as duas portas que ainda estavam fechadas do guarda roupas e descobri roupas masculinas ali. Afinal Tabata tinha um pai dentro de casa.
Havia tanta coisa que eu tinha que descobrir ainda. Tanta coisa em tão pouco tempo. Tabata dissera que eu morreria logo. Ela sempre me dizia coisas legais e construtivas, não?
Finalmente achei um casaco útil. Era um grande casaco. Não chegava a ser um sobretudo, mas me ajudaria. Vesti-o e tirei a faca do bolso da calça para guardar em um bolso interno do casaco.
Desci as escadas e, de primeira, vi Tabata e sua mãe. Elas me olharam. Depois vi que elas não estavam sozinhas na sala. Haviam mais dois policiais no cômodo. Danou-se.
Se eu corresse, acho que seria pior. Então terminei de descer as escadas.
Olhei para os rostos dos dois policiais.
  – Renan – disse um deles. – eu imagino.
 – Sim, sou eu, senhor. – Se tinha uma coisa que eu havia aprendido no "manual de como não ser preso à primeira vista" era chamar o policial à sua frente de senhor.
  – Pode nos acompanhar, rapaz? – ele me agarrou o ombro com um pouco de força e me arrastava à porta. – É apenas por um minuto.
Droga! Eu não podia acompanhar eles. Andressa!
 – Precisa ser agora? É que...
  – Precisa, sim, garoto.
  – Se quiser, podemos usar as algemas. – disse o outro policial. Digo que fiquei um pouco assustado com isso.
  – Tom! – disse o que me segurava para o outro. – O garoto não oferece perigo nenhum.
Tom limitou-se a continuar me olhando.
Ele tinha algo que me era familiar.
Virei-me e mexi a boca, sussurrando "Onde eles estão?" para ela.
Ela deu de ombros em um gesto de desconhecimento.
Ainda olhando para ela. Sussurrei "Vai dar tudo certo, não se preocupe".
Ela sorriu em desanimo e balançou a cabeça em afirmação. Olhei para sua mãe e ela, mexendo os lábios, apenas, disse: "Boa sorte".


Fui levado até o carro policial. Me acomodei – ou qualquer coisa assim – no banco traseiro enquanto os dois se sentavam à frente. Olhei pela janela e pude ver marcas de cocô de pombo no vidro. Olhei atrás e vi que havia no porta-malas também. Aquele era o carro que me perseguira mais cedo. Não contive uma risada.
O policial ao volante, que não era Tom, não se continha, se balançava, parecia que queria dizer algo. Eu não me atreveria a perguntar o que era.
O outro, Tom, não demonstrava emoção alguma. Ficava parado ali. Parecia esperar. Não ansioso como o outro, mas mais paciente. Esperando chegar a hora certa. A hora certa de que?
Eu tinha que sair dali. Quanto mais tempo eu ficasse ali, mais tempo eu perderia. Andressa! Eu tinha que salvá-la.
Olhei pela janela e vi que tomávamos um caminho conhecido. Eu já havia andado por aquela rua. Era a rua da casa de André.
De repente me veio André na cabeça. O que acontecera com ele? E Rosa? Os dois desapareceram.
O pior era que, apesar de eu já ter vivido um monte de coisas, eu nem ao menos sabia o que eu fazia naquela viatura.
 – Desculpa, – eu disse – mas por que eu estou sendo levado à delegacia?
Tom deu uma risada curta. O outro permanecia imóvel.
  – Já você descobre, garoto. – disse Tom.
Senti um arrepio repentino. Talvez fosse a fome que eu tentava esquecer.
Olhei novamente à janela e vi que entrávamos na rua da casa abandonada. Mas que diabos estávamos fazendo lá? A delegacia ficava à umas boas quadras dali.
 – Desculpa, mas onde...
Olhei para os dois a tempo de ver Tom apontando uma arma para a cabeça do outro policial que engoliu a saliva a seco.
O Som quase fez meus tímpanos estourarem.
O carro oscilou e fez umas curvas e eu senti meu estômago vazio revirar dentro de meu organismo, eu iria vomitar.
Tom segurou a mão do policial agora morto e virou o volante. Fizemos uma baliza um tanto assustadora. Imagino que Tom tenha apertado o pé do outro com seu pé pois, bruscamente, o carro estacionou.
Bati minha cabeça contra o banco à minha frente e depois voltei com tudo para trás.
Vi o sangue no banco – e agora em mim – e fiquei boquiaberto.
 – Você – minha voz tremia – matou ele... você ma-matou ele. Matou ele.
  – O meu contrato – disse ele engatilhando a arma – era te trazer aqui. Vivo e em segurança.
Ele apontou a arma para minha testa.
  – Mas não é todo dia que se tem o grande Renael no seu banco de trás, não é?
 Sua vida termina aqui–, dissera Tabata. Então, realmente, minha vida terminava ali?
 – Quem é você?
Ele tirou um crucifixo de madeira de baixo da gola da farda e o segurou, estava preso em seu pescoço.
  – Sou pago para fazer justiça. A minha justiça.
Eu contei os milésimos que ele levou para puxar o gatilho e o som pareceu durar dois minutos inteiros dessa vez. Mas, dessa vez também, algo caíra de pé em cima do capô do carro, o fazendo inclinar. Tom errou o tiro acertando o banco a uns dois centímetros de distância de meu ombro. Ele foi lançado contra o vidro dianteiro do carro, que agora estava para baixo e estilhaçado. Fui jogado para frente, mas por sorte, não me machuquei. Meu anjo da guarda é o cara.
Gabriel arrancou a porta do motorista.
  – Venha.
Meu anjo da guarda era mesmo o cara. Apesar de ser muito chato e confuso às vezes.
Segurei sua mão e ele me puxou para fora do veículo.
 – Quem é esse doido? E muito obrigado.
  – De nada. Tom?
 – Sim.
  – Eu cuido dele. Vá, você não muito tempo. Ela está lá dentro. – ele apontou para a casa abandonada.
Balancei a cabeça, confirmando.
 – Gabriel. – ele me olhou. – Eu vou... morrer hoje?
Gabriel sorriu, não feliz, mas aqueles sorrisos que as pessoas dão quando estão solidárias.
  – A sua vida já foi escrita desde que você nasceu, Renael. O que acontecer hoje será apenas o começo dela. Agora vá.
Sorri para ele.
Corri em direção à porta da casa abandonada. Se esse fosse o último dia de minha vida, que esse fosse o dia que eu salvasse a pessoa que amo.

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