domingo, 15 de agosto de 2010

Reunião com o inimigo

Entrei pela porta, dessa vez. Sabia que estavam me esperando.
Mas, para minhas surpresa, o que encontrei lá dentro, não foi a mesma casa quebrada e velha da qual eu fugira há um dia atrás. A casa estava diferente. Estava bonita, decorada. Alguém fizera uma reforma nela.
Adentrei-a com receio, afinal, não era a mesma casa.
À frente, escuridão. Não conseguia ver nada.
Eu estava na sala. Onde antigamente jazia o sofá velho e rasgado, agora haviam cadeiras de madeira estofadas e muito bonitas.
Continuei andando e senti um cheiro muito bom. Incenso. Lembro-me desse cheiro. Era um cheiro que eu sentia quando criança. Eu... Não me lembro de muita coisa de minha infância. Mas esse cheiro... Ele me trazia lembranças. Lembranças de coisas que talvez possam não ter acontecido.

– Mamãe, que cheiro é esse?
– É Rosa-do-Leste, querido.
– Cheira bem!
Ela riu.
– Sim, querido. E ainda serve para afugentar espíritos.
– Espíritos? – olhei-a com suspeita.
Ela sorriu.

– Ela estava certa. – disse uma voz ao longe. – Afasta os espíritos. Bons e ruins.
Uma luz se acendeu. Eu estava começando a me perguntar se eu estava mesmo naquela casa que eu entrara. O cômodo à minha frente era enorme e muito bem decorado com cortinas em todas as paredes. Cortinas vermelhas.
A pessoa que falava então apareceu, caminhando em direção à mim. Era Bruno. Ele trajava um terno. Diferente de todas as maneiras que eu já vira ele. Enquanto ele caminhava lentamente ruma à mim pude notar no cômodo atrás dele. Havia uma mesa redonda. Metade do cômodo permanecia apagado.
Bruno se aproximou.
– Junte-se à gente, Renael. – disse ele agarrando meus ombros e me empurrando para dentro do cômodo que ainda estava com as luzes apagadas.
– Onde está a Andressa, Bruno.
Ele deu uma risada curta e disse:
– Ora, não vê ela ali, não?
As luzes que estavam apagadas se acenderam e pude ver Andressa deitada na mesa redonda.
– Andressa! – eu ia sair correndo mas Bruno apertou mais meu braço deixando-me imóvel.
– Calma. Já tratamos da garota. Primeiro tratemos de você.
Hã? Não entendi. Trataríamos de mim?
Ele me levou até uma cadeira rente à mesa. Sentei-me nela e olhei para Andressa. Ela estava deitada na minha frente. Se eu pudesse tocá-la...
Estiquei meu braço para tocar o dela mas ele foi esmagado contra a mesa me deixando uma dor terrível. Bruno havia batido no meu ante-braço com um livro, tão grosso quanto uma lista telefônica. Agora meu braço estava dormente.
– Já disse que a garota é depois. – disse o infeliz ao meu lado.
Meu braço latejava de dor. E agora a fome e o cansaço teimavam em voltar. Como se eles me empurrassem a tocar Andressa. Só Andressa me daria forças ali. Eu acho que Bruno sabia disso pois não me deixava tocá-la.
– É incrível!
Eu apertava meu braço, massageando-o. Olhei para ele com a cabeça baixa desejando todo o mal que eu tinha no coração.
– Sabe – ele continuou, – aconteceu a mesma coisa comigo. Faz muito tempo. Mas aconteceu.
– Do que está falando? – perguntei.
– He, he. Você não sabe de nada.
Ele andou ao redor da mesa e sentou-se numa cadeira do outro lado. Pude então perceber que Vitor estava sentado lá. Todo ressecado. A pele estava totalmente desidratada e se ele não estivesse mexendo os olhos eu poderia jurar que estava morto. Como eu não o vira ali antes?
Bruno segurou o queixo de Vitor e disse olhando para ele:
– O que a ganância não faz com uma pessoa? – ele soltou o queixo do garoto com um empurrão e que fez a mandibula dele quebrar e agora estava pendendo pela cartilagem. Vitor estava horrível e não se mexia. Apenas seus olhos tinham movimento. – Sabe por quê ele está assim, Renael?
Balancei a cabeça nagativamente.
– Gula. Um dos sete pecados. Eu apenas fiz uma proposta a ele. "Você pode ter tudo, Vitor – ele parecia estar citando algum texto dentro da cabeça dele. – Tudo o que quiser. Popularidade, garotas. Basta me ajudar". Claro que eu não disse quem eu era na realidade.
"Quem ele era na realidade"? 
– Eu fingi ser seu amigo. Mas na verdade, verdadeira, a culpa é dele. Ele é um guloso. Ele se viciou no poder que ganhou. Ser popular é bom. E ele viciou muito fácil. O problema é que ele se acomodou. Achou que seria fácil conseguir o que quisesse. Pobre Vitor. – Ele se abaixou à altura do rosto de Vitor e o encarou nos olhos. – Eu acabarei com seu sofrimento, filhinho-de-papai. – Bruno colocou as mãos na cabeça de Vitor e pude ver o olhar de desespero do garoto que agora parecia um maracujá. Bruno empurrou uma mão na direção em que puxou a outra. Vitor não vivia mais.
Eu vi tudo aquilo sem conseguir fechar os olhos. Era chocante demais. Era... inexplicável. Bruno era um monstro!
– Foi o melhor para ele – Bruno ainda olhava para o corpo que agora caía no chão. Ele terminou de empurrar o defunto e sentou-se na cadeira onde ele estava. – Mas ele já não era mais útil mesmo. Afinal, a Andressa não o amava mais, não é mesmo? Ela ama você.
Meu corpo reagiu às palavras dele. Senti frio internamente.
– Bom. Você deve ter lido o livro que te dei não é? O de sacrifícios.
– Você não me deu livro algum. Eu o achei na bolsa do André.
Bruno riu.
– Ah, qual é! Não acha que o André teria um livro daqueles, não é? Eu coloquei o livro na bolsa dele. Eu o lembrei de te ligar para marcar o dia em que vocês dois fariam o trabalho. Mas isso não aconteceria se essa anta não tivesse deixado o sacrifício fugir. – ele chutou o corpo de Vitor no chão. – E ela fugiu. E fugiu para sua casa. Para sua casa! Logo para a casa do Anjo-Rei da profecia. O grande Renael. O substituto de Thomazrael. Blá, blá, blá! VOCÊ TINHA QUE EXISTIR, SEU DESGRAÇADO?
Ele se levantou e as cortinas vermelhas oscilaram. A casa pareceu entrar em tremor.
Ouvi barulhos de batidas. Como se algo estivesse batendo na parede ou se alguém estivesse se jogando contra as janelas.
– É seu amigo. Gabriel. Sabe, anjos. Eles são espíritos se for parar para ver. Eu não. Mas eu já fui.
Ele caminhou até a janela e tirou a cortina da frente. Gabriel tentava entrar mas não conseguia. Se anjos eram espíritos o incenso não deixaria ele entrar. Bruno mostrou a língua para ele e fechou a cortina de novo.
Voltou à sua cadeira e sentou-se.
– Pois bem. Como eu estava dizendo...
– Quem é você?
– Há, há. Achei que você nunca ia perguntar. Eu sou o Anjo-Rei, Renael. Eu sou seu antecessor. Sou Thomazrael. Ou já fui um dia. Antes de ser expulso. Antes de cortarem minhas asas. Antes de furarem minhas mãos. Antes de me mandarem para o inferno.
Estremeci.
– Tem medo dessa palavra? – ele começou a rir. – É por que você não conhece o lugar, Renael. Lá nada o que disser terá som. Nada o que fizer terá movimento. E quando você se dá conta do calor, sua pele já está negra de tão carbonizada.
Engoli em seco e isso foi motivo para ele achar graça.
– Mas isso já é meu passado. Aliás, eu escapei de lá. Há, há. Acredita nisso, Renael? Eu escapei de lá. E foi tão fácil.
Ele ficou quieto por um minuto, acho que lembrava de como fizera o que acabara de dizer, depois continuou.
– Mas como tratávamos de negócios. Eu ainda preciso de uma coisa. O sacrifício de um amor verdadeiro. E olha que coincidência! Eu tenho um amor verdadeiro bem aqui na minha frente. – Ele começou a rir.
– Não acha que... Não acha... Acha que vou matar Andressa? Pode tirar seu cavalinho da chuva pois isso não vai acontecer.
Ele riu mais alto e se arqueou para ter mais forças de rir. O que era tão engraçado, afinal?
– Acha que... Quero...
Ele parou e se recompos.
– Mas não será você que irá matá-la, Renael.
Ele estalou os dedos e então Rosa e André surgiram dos dois lados da casa e me seguraram os braços. Nesse meio-tempo, Andressa acordou, se levantou e ficou de pé em cima da mesa. Ela abriu os olhos e pude ver que neles tudo era vermelho. Meu Deus!
– Será o contrário – disse Thomazrael.
Andressa pulou de cima da mesa caindo de pé à minha frente. Apalpou-me o tórax e já pude sentir um pouco mais de força. Porém ela tirou sua mão e junto dela vinha uma faca. A faca que eu guardava no casaco.
– Andressa...
Ela cravou a faca na minha barriga.

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