domingo, 22 de agosto de 2010

Dor

A dor, no começo era pouca, mas depois se tornou insuportável.
Eu olhava para os olhos dela tentando achar algo da minha Andressa, mas eu não conseguia. Ela não era a minha Andressa.


— Andressa...
Ela não respondia. Cravava cada vez mais forte a faca em minha barriga.
Eu olhei para baixo e vi meu sangue caindo do ferimento. Eu já começava a ficar enjoado.
A tontura tomou minha cabeça e, de repente, parecia que tudo estava girando.
O sangue que estava no chão era o meu. Minha mente não trabalhava mais tão rápido. O toque de Andressa, em vez de me trazer força, estava me matando.
O sangue caminhava lentamente pelo chão. Ia em direção à Thomáz. Ao chegar aos pés do anjo caído, em vez de acontecer o que eu previa, aquilo que acontecera com Vitor em minha visão, em vez de ele absorver o sangue, a casa é que fez isso. O sangue foi absorvido pelo chão. como uma fralda absorve a urina do bebê. Foi tão rápido que mal consegui acompanhar a velocidade.
Andressa retirou a faca, lentamente, de meu estômago. Minhas pernas ficaram fracas e eu perdia mais sangue. O sangue que a casa absorvia.
Minha visão começava a escurecer. Mas eu conseguia ver, do outro lado daquele cômodo, Thomáz, ou Bruno, lendo o livro. Aquele que começou tudo isso.
Ele parecia preocupado enquanto lia. Murmurou "Droga!", pude ler em seus lábios. O som não se propagava em meus ouvidos. Era um chiado constante. Eu estava morrendo? Bruno fechou o livro e senti mais uma ponta cortando minha carne. Dessa vez foi nas costas. A dor era insuportável.
Devo ter gemido. Não escutava minha voz, apenas meus pensamentos. Era difícil acreditar que Andressa, fazia aquilo. Eu tinha que despertá-la.
Tudo em meu campo de visão era um borrão. A visão ora ia, ora voltava.
Pude ver Thomáz batendo palma. Após isso caí no chão. Caí virado para cima. Via o teto daquela casa. Via tudo meio borrado, mas pude ver o teto se mexer, e eu tenho certeza que vi.
O teto oscilou. Depois, como se estivesse abrindo uma lata de sardinha, alguém retirou o teto da casa. Era Gabriel. Ele arrancava o teto de telha com uma mão apenas. Eu via isso ou eu acabava de descobrir que a morte era um sonho eterno. Gabriel, após arrancar totalmente as telhas de cima da casa, as jogou de lado e mergulhou dentro da casa. Porém ao tentar fazer isso foi arremessado para cima, como se tivesse sido ricocheteado.
As minhas esperanças iam desaparecendo junto com a minha visão.
Andressa agora estava debruçada em cima de mim. Ela recuperara a consciência. Eu via, ora borrado, ora não, seu rosto em cima do meu. Eu não conseguia fazer nada.Não conseguia expressar meus sentimentos e nem meus sentidos. Eu queria abraçá-la. Se aquele fosse o último dia de minha vida, queria salvá-la. Morrer para salvá-la. Salvá-la com minha vida. Mas eu ia morrer. Eu não iria salvá-la. Eu iria fracassar em minha missão.
Ela me beijou. Eu não conseguia sentir nada. Queria sentir aqueles lábios mais uma vez. Queria senti-la. Ela continuava apertando meus lábios contra os dela. Quando soltou eu abri meus olhos. Parecia que minha visão estava voltando. Ela deixou seu rosto em meu campo de vista e eu vi seus lábios de mexendo
— Renan! — ela gritou e eu podia jurar que eu ouvira a voz dela. Como um sussurro, mas ouvira.
Senti um espasmo em minha mão e percebi que eu mexia meus dedos.


Juntei todas as minhas forças em minha mão para levantá-la e tocar o corpo de Andressa. Ela percebeu que eu me movia e olhou para minha mão. O formigamento aos poucos ia voltando a ser sentimentos concretos. Dor concreta.
— Ai. — resmunguei quando senti uma pontada em meu estômago.
Andressa agora segurava minha mão, entrelaçava seus dedos nos meus. Eu sentia a energia dela passar para mim. Mas ainda assim, eu não me curava. O ferimento continuava em minha carne, continuava a jorrar sangue.
A força que Andressa me passara era o suficiente para eu poder dizer minhas últimas palavras à ela.
— Andressa... — minha voz era quase inaudível.
— Renan... Renan!
— Andressa... apa... apa...
— Renan, não diga nada. Vai ficar tudo bem!
— Não... — balancei a cabeça em sinal negativo.
— Vai sim. Escute, eu te amo. Eu te amo muito. Desde que te vi pela primeira vez. Desde esse dia sabia que você seria alguém muito especial em minha vida. Quando entrei na sua casa, eu não fui lá por engano, ah, Renan. Eu sabia que você morava lá. Sabia que você me protegeria. Eu sempre senti uma atração por você. A mais esquisita de todas. Escute... eu te amo. Viveremos juntos, está me ouvindo? Juntos! Vivos!
Os músculos de meu rosto relaxaram. Um sorriso. Era o que surgia em meu rosto. Com muito esforço coloquei a mão no rosto de Andressa. Ela chorava, suas lágrimas caíam em meu pescoço. Depois apontei para a esquerda, de onde vinha uma fumaça trazendo um aroma infernal. Minha mão caiu no chão.
— Apague...
Ela olhou para o incenso e entendeu.
— Você vai ficar bem, tá me ouvindo? — disse ela e antes de me dar um beijo e ir em direção ao incenso.
A dor me consumiu novamente, mas eu tinha que fazer algo ainda.
Com o braço que funcionava fui agarrando o chão à frente e me arrastando em direção à Thomazrael. A dor era imensa mas eu aguentaria. Por Andressa eu aguentaria.
Thomáz me olhava cético. Começou a rir.
Eu chegava lentamente perto dele. Quando consegui chegar próximo à seus pés ele deu um passo atrás. Agarrei sua perna com minha mão e meu braço, agora não muito bons. Ele desvencilhou-se e chutou meu rosto. A dor agora aumentava. Havia mais dor a sentir. meu corpo estava inútil. Voltei a me arrastar e agarrei sua perna novamente. Ele apenas tirou-a de perto de mim, e disse:
— Você não desiste fácil, ein garoto.
Ele pisou em minha mão boa e soltei um grito de dor. Ele quebrou os ossos de minha mão.
Ele ria.
— Tem que adimitir, Renael. Você perdeu.
Eu soltava grunhidos de dor então percebi algo que Thomáz deveria ter percebido antes. Meu olfato ainda não havia desaparecido. Podia sentir o cheiro de destruição, o cheiro de meu sangue, o cheiro de queimado, qualquer cheiro. Exceto um. Um cheiro que Thomáz percebeu que se extinguira naquele exato momento.
— Droga! — ele disse.
Um segundo depois, Gabriel pousava à frente de Thomáz.
— Opa... — disse Thomazrael, com cara de bobo.
Gabriel deu um soco em Thomáz e este voou para trás indo de encontro à parede. O sorriso continuava em seu rosto.
Andressa debruçou-se em cima de mim.
Thomáz ria e Gabriel o fitava. De repente, Gabriel mudou seu humor, indo de pacífico à nervoso pegando a mesa que Bruno usara agora pouco e jogando contra o inimigo. O inimigo que ainda ria. Gabriel foi para perto de, tirou a mesa de cima do otário e agarrou seu pescoço. Bateu-o na mesa a partindo em dois.
— Está muito violento para um anjo, Gabriel.
Dava-se para ver o rancor no rosto de Gabriel. O rosto branco e sempre calmo, misterioso, agora estava transformado.
— Sabe que não pode fazer mais nada. Só tem uma escapatória. Você quer o seu "Anjo-Rei", não é? Não vai querer estragar tudo no começo, vai. Lembre-se das ordens do Pai. — Bruno, ou Thomazrael, provocava Gabriel.
— Como ousa...
Gabriel parou de enforcar Bruno e ficou de pé olhando para o vazio.
A dor consumiu tudo em mim. Todo o meu corpo doía. Como se me espetassem em toda parte do corpo. Os ouvidos eram castigados com um incômodo chiado. Eu queria gritar mas minha voz não saía. Minha mão com os ossos quebrados doía muito. O sangue continuava a jorrar, isso eu podia sentir, pois cada vez eu estava mais fraco.Não conseguia abrir os olhos e, agora, não conseguia mais respirar. Eu puxava o ar mas ele não vinha. Mas... eu não estava morto. Será que demoraria mais? Eu tinha força de vontade, mas ela se perdia dentre os pensamentos que pareciam luzes se apagando. Agora minha vida era pouca. Quase nada. Mas por que eu não morria logo? Dor! Eu sentia dor! Muita dor! Não podia reclamar. Não podia fazer nada. Apenas esperar o destino certo de todos.
— Andressa... — era a voz de Gabriel. Eu a ouvia dentre os chiados. — Mate ele.
Talvez os chiados estivessem atrapalhando minha audição.
— O que? — era Andressa, eu reconhecia.
— Tome — ouvi um barulho de metal se chocando contra o chão. — Atire nele.
— Está brincando?... Quem é você afinal?
— Ele está sofrendo, agonizando. Acabe com o sofrimento dele. Será o melhor. Ele não voltará à vida.
Ficou um tempo em silêncio. Gabriel queria que Andressa me matasse. Mas por que? Apenas para acabar com meu sofrimento?
— Eu... — Andressa parecia pensar em mil coisas.
— É o melhor Andressa. Deus irá te perdoar por isso.
— Não posso... — ela parecia estar chorando.
A dor aumentava em vez de diminuir.
— Desculpe, Renan. — ela chorou, eu pude ouvir. — Eu te amo.
Pá. foi mais ou menos assim o som que levou minha vida embora.


A escuridão. Por mais ou menos dois minutos fiquei preso dentro dela. Preto, era apenas o que eu via. Tudo preto.
Eu não respirava mais, eu não via mais, não ouvia mais. Minha voz, calada. O desespero passara. A dor passara. Tudo passara. Eu não imaginava em que posição eu estava. Mas eu não me moveria mais, então não fazia sentido pensar nisso. Pensar... Era a única coisa que eu conseguia fazer depois de não estar mais vivo.
Pensava na cena em que eu me despedira de meu corpo. Pensava em Gabriel e todos os seus mistérios. Pensava em Bruno, o anjo caído. Pensava em Andressa, a primeira pessoa pela qual eu me apaixonei. Pensava em tudo o que eu vivera. Tudo. Nada. Eu não vivera praticamente nada. A minha vida ficara incompleta. Eu ainda tinha muita coisa para fazer. Muita coisa.


Levantei-me. Sem dor, sem chiados e nada. Toda a minha força, eu a sentia em todo o meu corpo.
A casa estava diferente, ou melhor, igual a como era antes. Todos me fitavam. Andressa, inclusive.
Ela me fitava com lágrimas nos olhos, cética, desesperada.
— Renan...
Ela chorava mas estava sem reação.
Segurei suas mãos, olhei-a nos olhos. Disse:
— Obrigado, Andressa.
Então abri minhas asas.

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